sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Carta a um bando de jovens médicos

Escrevo agora porque um dia li, quando jovem, a Rainer Maria Rilke e suas "Cartas" - destinadas ao rapaz indeciso entre a poesia e a vida militar, o tal "Jovem Poeta" que dá nome ao volume - e foi a primeira vez na vida adulta que um livro causou em mim impressão tão marcante. Há várias passagens que jamais consegui esquecer, e porquê, e onde eu estava, e a que situação tal texto me remeteu.

Escrevo porque me enxergo em vocês, jovens (futuros) médicos, de quem me aproximo com respeito e interesse genuíno.

Porque lá na Anatomia Humana encontrei um ambiente discreto, seríssimo e agradável a um só tempo, onde podemos nos reunir e estudar, simplesmente, com o auxílio de pouco mais que nossas mentes e olhos e mãos - e agora o auxílio luxuoso de investimentos em moldes que ultrapassam a expectativa mais otimista. (Isso em um tempo em que as quedas na bolsa afetam pesadamente as 5 maiores universidades particulares americanas, forçando-as a diminuir custos até em subvenção de moradia e transporte para alunos e funcionários).

Porque enxergo em vocês primeiro um desejo, depois uma vocação, e por fim um comprometimento invejáveis, salutares e bem direcionados. Desejo de ser médico, vocação para o trabalho de médico - e seu interesse o demonstra desde já - além do necessário rigor no cumprimento de metas.

E já que falamos em metas, que as façamos diárias (coisa que alguns de vocês terão que aprender a fazer com pacientes crônicos de maneira geral, os de terapia intensiva e oncologia em particular), celebrando (e desfrutando) cada passo, sem pressa de chegar.

Afinal, "Não viajamos apenas para chegar, mas para existir enquanto viajamos" (Goethe).

E já que falamos em direção, depressa, tomemos o caminho do bem. E que seja bem bom mesmo, este bem que trilharmos, de modo que só raramente possamos nos permitir duvidar. Principalmente não nos esqueçamos que, se não podemos desprezar totalmente o julgamento alheio, não podemos por ele pautar o foco de nossa auto-imagem e estima.

"Não pense no plantão, mas no procedimento", eu ouvi desde sempre dos médicos mais velhos que eu; e hoje repito aos que me ajudam - não só médicos - na labuta diária do hospital.

"Estude para aprender, não para tirar nota", é outra. Mas nunca entendi, afinal, éramos avaliados por elas! "Quero só ver na hora da nota" era o outro lado da moeda, também entreouvido amiúde.

Trezentas páginas por semana - ou muito mais - é que são a dura realidade.



"Eu quero crer que 'eles' (leia-se os professores, nota do autor) o façam com objetivos pedagógicos", repetia o irônico colega de república a respeito de uma ou outra injustiça que presenciávamos (ou de que éramos objeto) nas lides universitárias. Hoje que estou "do outro lado", lhes asseguro:
a gente sabe o que vocês tão passando, e pior, antevemos muito do que vocês ainda terão que suportar até alcançar o famoso canudo e uma liberdade que nunca será como vocês (nós) imaginaram (imaginamos).

E aí me lembro que nas aulas teóricas da Anatomia do meu tempo a gente recebia um roteiro, muitas vezes ininteligível em nossa própria letra, idioma e caderno, obtido a muito custo e concentração para ser anotado na penumbra, defronte ao projetor de slides no anfiteatro sempre quente ou gelado demais. Livros eram raros, e eram pouco para nossa curiosidade. O rodízio dos poucos exemplares da biblioteca nem sempre contemplava a todos. Cansei de ler o Gardner, até outro dia era o meu livro de cabeceira para a Anatomia; hoje parece que não existe nada lá que eu não saiba, que eu não lembre, mas nem por isso eu aprendi "toda" a Anatomia que há (lá) para se saber, longe disso. Nas aulas práticas, o aprendizado ocorria mesmo era com os monitores, até porque quando os professores passavam, éramos como vocês às vezes: queríamos saber tudo, inundávamo-los de perguntas, soterrávamo-los debaixo de nossa curiosidade infinita, esquecidos do mais.



Só a chegada da internet democratizou o conhecimento científico - embora a meu ver, de modo ainda incipiente.

Mas tivemos nosso momentos. O jornal-mural Portal Da Dor, as festas do Grêmio que lotavam a Amnesia, maior casa noturna de Curitiba na época, toda uma relevância cênica e cultural que a cidade tinha então. E a formatura, na Federal sempre mais cara e mais bonita e imponente que a anterior.

Antes, muito antes disso em Bioquímica, por exemplo, o Professor Sieg Odebrecht - verdadeiro Homem da Renascença, formado em Farmácia, Bioquímica, Medicina &, Veterinária (eu disse "e") ; e, e, e... acho que também Engenharia (a lista era grande) - ia direto ao ponto: durante décadas deu as mesmas aulas em silêncio, escrevendo tudo com a letra miúda no quadro-negro, voltando ao início e perguntando logo se não podia apagar, até encher o quadro novamente, duas, três, quantas vezes preciso, ao longo de uma hora, hora e meia. Depois respondia "qualquer pergunta sobre Ciências, de qualquer área", orgulhoso do saber que lhe permitia tal arrogãncia benfazeja, além de resumir sua matéria àquilo que ele achava - tinha certeza - que precisávamos saber.

Outros vieram, outros tardariam um pouco mais. Coloquei no texto do convite um agradecimento aqueles que nos educaram para a liberdade e para a prática da verdadeira Medicina - ou algo que o valha, cito de cor - e hoje consigo admitir que foram todos. Sinto em todos nós professores do Curso de Medicina uma entrega a qualquer prova, do menos ao mais apto de nós, do menos ao mais experiente. E agradeço a todos aqueles que tiveram a paciência de, um dia, já formado, ensinarem-me a operar.

Citei também João da Cruz ao enumerar as "condições do pássaro solitário" e hoje sinto falta da matilha. Ajudei meu amigo a escrever o discurso aos pais e, cheios de marra, afirmamos que o dever deles estava cumprido, ou seja, que estávamos prontos. Não saberia intuir que ainda viria a conhecer o tal pão que o senhor da mentira amassou.



Mas tinha lá aquele Goethe, os quadros do Primo e a Bila Kaifa. Além do texto-chave do escritor-chave de todo meu processo mental de elaboração de referências, um trecho impactante do clássico de Victor Hugo, "Os Trabalhadores do Mar".





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Hoje me vejo de novo, como 671 vezes só neste blog, instado a escrever. Mas é um dia especial: venci a timidez como quem recebe uma ordem para fazer o que, no fundo, há tempos desejava: um grande, imperfeito e prolongado elogio, desses que não se faz à toa, à todos vocês, primeira turma de Medicina da UEPG.



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A única coisa triste a respeito de se estar na primeira turma de um novo curso, como acontece agora com vocês - competentíssimos campeões do vestibular - é não ter aula-trote.

Uma instituição na maioria das turmas de medicina de antanho, a aula-trote era preparada em sigilo por monitores (leia-se veteranos) e técnicos. Na "minha" me mandaram comprar um porta-agulhas bem grande - para que coubessem todas, e com chave, para ninguém roubá-las. Na que preparamos para "os nossos calouros", sugeríamos máscaras antigases para se defender dos humores cadavéricos, explicamos a teoria dos miasmas e repetimos as piadinhas de sempre sobre o material.

E tinha gente que levava a sério!

Bons tempos em que calouros eram celebrados com teatro e magia, recebendo as boas-vindas dos veteranos sacanas, que depois se riam à beça dos que anotaram tudo certinho... E que o trote mesmo, aquele da rua, não tinha violência e acabava em alegria. Mas bons tempos estes, também, em que os alunos vão ao posto de saúde quase todo dia, aprendendo desde cedo para que serve o que estudam e onde será necessário (e aplicado) tanto conhecimento.





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"There are only two ways to live your life. One is as though nothing is a miracle. The other is as though everything is a miracle."



ALBERT EINSTEIN





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Um grande abraço.







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Leia mais em:

O olho do homem...

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Aula de Anatomia

Um dia para VW

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Anna

13 Lineas

Os textos que não chegeui a escrever